A partir de 2020 a prefeitura de São Paulo encerrou as atividades da única autarquia responsável pelo gerenciamento de resíduos sólidos no município e criou uma agência de regulação que, além de resíduos, responde por parques urbanos, cemitérios, licitações, iluminação pública, mercados públicos, semáforos e todos os serviços delegados na cidade. Ideia perfeita para desmobilizar ações voltadas à prevenção e combate aos crimes ambientais relacionados aos resíduos.
A Autoridade Municipal de Limpeza Urbana – AMLURB era a autarquia responsável pelo gerenciamento de todos os resíduos na cidade de São Paulo até 2020, quando ela foi encerrada pela atual administração da cidade.
A AMLURB era o arcabouço técnico e administrativo ideal para uma capital, pois permite concentrar todos os esforços voltados aos resíduos sólidos numa cidade com diretorias ou divisões especializadas em cada tipo de resíduo. Era ainda a melhor forma de a cidade cumprir as metas e objetivos concernentes aos aterros clandestinos de lixo e entulho – sim, São Paulo ainda tem aterros clandestinos de lixo e entulho em operação.
Em se tratando de uma cidade com quase 12 milhões de habitantes, embora o papel da AMLURB ainda fosse incipiente e bem amador na gestão dos resíduos da construção, essa autarquia desempenhava função crucial e imprescindível para a regulamentação do transporte de RCD, seja pela competência legal em lidar com a questão e pelo seus quase 20 anos na gestão dos resíduos sólidos com conhecimento acumulado nos profissionais que ali trabalhavam e no relacionamento com geradores, transportadores, destinatários e com entidades associativas. Esse acesso a todos os atores do setor de RCD dava à AMLURB um passo à frente para a solução de problemas concernentes ao entulho na cidade de São Paulo.
A função da autarquia, extinta em 01/07/2021 por meio de um decreto municipal, era a de fiscalizar a geração, transporte e destinação de resíduos da construção e demolição. São Paulo era uma das poucas cidades no Brasil com uma divisão exclusiva para cuidar do RCD.
A reforma administrativa, nome dado a extinção de órgãos públicos pelo prefeito Ricardo Nunes (gestão 2020-2024), prometia economizar algo em torno de R$ 500 mil reais, ação inócua, pois com a redução da fiscalização, há tendência de aumento de infrações e crimes ambientais relacionados à gestão dos resíduos, o que resulta em ações de correções e planejamento da prefeitura em outros órgãos.
Essa “reforma administrativa” aconteceu na seara do ambiente hostil para a gestão dos resíduos da construção. A partir de 2017/18 houve significativa redução e precarização de regras atinentes à preservação do meio ambiente e dos planos estaduais e municipais de resíduos sólidos. O maior, ou pior, exemplo disso é o Plano Nacional de Resíduos Sólidos – Planares, feito por um grupo de pessoas totalmente alheias ao negócio, distante da realidade e sem compromisso com a causa e com a questão ambiental.
É elementar dizer que o Ministério do Meio Ambiente teve papel preponderante e irresponsável na construção de um ambiente “desregulado”, seja delegando a construção de política pública a um grupo de entidade com ideais heterodoxos, seja dificultando ou banindo a discussão com a sociedade.
Na esteira da miríade de abusos dos governos na área ambiental, em São Paulo a Secretaria de Meio Ambiente e Infraestrutura (atual SEMIL – Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística) apresentou o que é o pior plano estadual de resíduos sólidos da história. Então, para a cidade de São Paulo, não faltou “inspiração” para suprimir o único órgão de resíduos sólidos da administração pública.
Pois bem, a prefeitura de São Paulo então promoveu a extinção do que era a maior referência legal em resíduos sólidos da cidade e, em troca, prometeu economizar R$ 500 mil reais aos cofres públicos.
Apenas como registro, a cidade de São Paulo implantou a coleta seletiva para resíduos leves em 2016. De lá pra cá quase nada mudou. Há dificuldade de toda ordem e os custos de disposição de resíduos nos aterros sanitários aumentam a cada contrato.
Algumas perguntas pertinentes sobre isso:
- Houve alguma discussão com a sociedade e atores interessados sobre a necessidade em atender às demandas atuais, especialmente ao Marco Legal do Saneamento Básico e a PNRS 12305?
- Sabendo que a AMLURB tem expertise em resíduos sólidos, houve uma discussão a respeito da transferência de função à subprefeituras?
- O encerramento da AMLURB traz algum benefício à sociedade paulistana?
- Quais ou qual motivo, além da reforma administrativa, justifica o encerramento desta autarquia?
- As subprefeituras serão capazes de lidar com os crimes ambientais atinentes à geração, transporte e destinação dos resíduos da construção?
- A redução da fiscalização não irá anular os benefícios de uma “Reforma Administrativa”, pois tanto as subprefeituras como a transferência de atividades para outras secretarias levarão tempo e não estarão no foco dessas;
- Quem é o principal beneficiário do encerramento das atividades da AMLURB?
Intensificar a regulamentação do transporte de RCD (Resíduos da Construção e Demolição) e atender plenamente às metas do Marco Legal do Saneamento Básico, lei 14026/2020, passava obrigatoriamente pela Autoridade Municipal de Limpeza Urbana – AMLURB, porém, esse processo foi abruptamente interrompido para atender a um discurso simples, barato e político.
Essa decisão tem um único objetivo: reduzir ainda mais os controles sobre os resíduos da construção.
Infelizmente a cidade de São Paulo ainda conta com inúmeros aterros clandestinos de lixo e entulho e milhares de pontos viciados. Carece de uma política séria voltada a resíduos da construção e caminha a passos lentos na construção de ecopontos para o atendimento ao pequeno gerador.
A reforma administrativa, nome bonito para descrever o desmonte de políticas de preservação ambiental e controle, nada mais é do que a redução do aparato de combate aos descartes irregulares e criminosos de lixo e entulho, bem como, ao enxugamento da máquina pública que resulta em prejuízo para a população.
Manter ou reformar a AMLURB seria a opção mais sensata, pois, mesmo com problemas estruturais e com dificuldades na organização dos resíduos, esta autarquia seria estratégia para elevar os índices de reciclagem na cidade, bem como, concentrar o conhecimento sobre o negócio num espaço imune à interferência política preservando as decisões técnicas e a manutenção dos serviços ambientais.
O decreto municipal 60353/2021 desconsidera a realidade paulistana, assim como, ignora os recentes eventos relacionados aos resíduos sólidos, incluindo o RCD. Transferir as funções da AMLURB para as subprefeituras é garantir a impunidade, especialmente a existência de aterros clandestinos.
A decisão, notadamente equivocada e mal intencionada, mostra a ojeriza do prefeito à preservação ambiental. Ainda mostra um total desconhecimento dos problemas mais profundos na gestão dos resíduos na cidade. É certo e seguro que isso contribuirá para o retrocesso na gestão ambiental e exigirá da sociedade uma cobrança mais contundente para padrões mínimos na preservação ambiental e no atendimento ao Marco Legal do Saneamento e à Política Nacional de Resíduos Sólidos.
É ainda um mal exemplo para as cidades da Região Metropolitana que recebem boa parte do entulho legal e ilegal da capital e não tem ferramentas para controlar e não encontram na cidade uma forma de resolver esses crimes, uma vez que a mentalidade da cidade e seus administradores é imbuída de incongruências técnicas e conceituais.
Ainda hoje encontramos servidores municipais que pensam que o resíduo que sai de São Paulo não é mais responsabilidade do município. Ledo engano.
Assim como no estado, com o fatídico Plano Estadual de Resíduos Sólidos, baseado em nada e entregue e terceirizado a grupo de lobbies, o impacto negativo dessas políticas poderá ultrapassar 10 anos.
Repassar as funções da AMLURB para uma nova agência deve atrasar o avanço da regulamentação do transporte de RCD, bem como, interromper um processo de formação e domínio do conhecimento sobre resíduos da construção e seus crimes.
A decisão tomada pela prefeitura de São Paulo mostra que os absurdos cometidos nos últimos anos devem persistir na agenda pública.